As memórias da infância e adolescência chegam em pedaços. E sei que nunca voltam iguais, são acrescidas de outros detalhes, sentidas de um jeito diferente, influenciadas que são pelo tempo que passa. Misturo as recordações ao que vivo hoje, ao que acumulei em seis décadas. Faço associações com a infância e adolescência dos meus quatro filhos, dos filhos dos amigos, dos que vejo por aí, pelas ruas. Quisera ter um filme completo, um big brother da minha vida. O cinema já fez algo parecido. Não é difícil imaginar um microchip que registra toda a sua vida em um filme que pode ser revisto a qualquer momento na sala, comendo pipoca, rindo, chorando, ou até mesmo cochilando na metade.
Já experimentei a sensação inquietante de voltar pessoalmente aos lugares onde vivi minha infância e adolescência. Inesquecíveis viagens, perturbadoras constatações que mostravam um tempo diferente, uma paisagem com dimensões alteradas. Imaginei aquela janela tão grande, aquela árvore bem mais alta. E a avó da minha colega de aula na primeira série que descobri não ser a avó, mas a própria colega. E os cheiros, as cores, a atmosfera do lugar. Tudo acionando por dentro e por fora um estado esquisito, singular.
Nada, porém, iguala-se ao que ficou impregnado em mim. O pudim de laranja feito pela minha mãe, aquele sabor que até hoje procuro por aí. A coceira pelo corpo todo depois de me jogar pela grama durante uma tarde inteira, sonhando ser goleiro de futebol. E o circo que me hipnotizava, o teatro de lata que me mandava recados que eu só compreenderia muitos anos depois. E a bênção dos avós, o beijo nas mãos enrugadas, protetoras.
As fotografias do passado vão se empilhando. Rapidamente viro as páginas e reconheço o sorriso do meu pai brincalhão e seus cavalos de corrida, a voz de minha mãe cantando para me adormecer, a turma do colégio, todos de cabelos compridos, o jogo de botão, o cachorro, os gatos, os passarinhos, as namoradas, as aulas que deixei de assistir para ir ao cinema ou por pura preguiça. E a galeria de professores em retratos engraçados, cada um do seu jeito, deixando sua marca.
Tento separar as memórias em vários álbuns: o álbum de ser filho, o álbum de brincar, o álbum dos filhos e o álbum de ser aluno. E percebo que eles se misturam. Brinquei com os amigos, com os pais, e brinquei muito no colégio. E fui aluno, também, com os pais e amigos. Melhor não separar estas imagens. Prefiro deixá-las misturadas nesse enorme baú que mantenho com a tampa sem cadeado. Afinal, a aventura da vida continua e vou acrescentando outros recortes, outros personagens, outros amigos, outros professores, colegas, outras brincadeiras.