Ouço por aí que o aroma do café pode ser tão prazeroso quanto o sabor da bebida. Tenho dúvidas e não discuto.
Lembro de uma manhã de inverno. O café ainda frio e seco antes de passar pelo filtro. O aroma escapa da caixa, aperta minha garganta e as pernas bambeiam com o cheiro do pó libertado de um vácuo, depois de meses.
Várias décadas interrompem a mão e a colher topetuda. São poucos segundos. A visão do café, da xícara, do coador e do bule amassado é esfumaçada por uma paisagem em sépia. Formigas desenham tatuagens abaixo dos meus olhos. Cócegas ou lágrimas? A memória escorre. O pó de café passa por uma ampulheta.
O cenário se transforma. Na rua, um pedaço de vida com sete anos a caminho da escola. O menino diminui os passos e exercita a leitura. No alto de uma parede velha, em maiúsculas: torrefação e moagem de café. Um cheiro amargo atravessa as janelas e o acompanha até o final do quarteirão. Na volta, o encontro se repete. Ele sempre diminui a velocidade quando passa pela frente do que chamam de fábrica de café. O letreiro continua igual. O cheiro do café torrado gruda no uniforme e se esconde em alguma folha de caderno. Ainda bem que não é como mancha de tinta de caneta que não desaparece do uniforme e deixa sua mãe furiosa.
Na cozinha, outra vez. Com os olhos fechados, aproximo o nariz do pacote. Tento aprisionar o aroma. Busco mais. Em uma piscada e meia volto para a rua da cidadezinha. Nenhuma carroça, nenhum cocô de cachorro, nenhum tropeção. Eu e minhas narinas frias puxando o cheiro forte.
Olhar desfocado agora no pó que escorrega da colher para o coador. Água na temperatura certa. O passado no cheiro e na espuma. O perfume sobe.
Uma escada de madeira alcança o letreiro na fábrica de café.
Na mesa, a xícara está com a asa virada para a esquerda.