É bom voltar no tempo para reativar a memória e exercitar o prazer de contar histórias. Meu pai era um bem-humorado contador de histórias e anedotas. Mas minha avó Almerinda gostava de narrar causos. Suas recordações eram povoadas por personagens esquisitos que ela utilizava no dia a dia, ao fazer comentários sarcásticos. O “Abobado das Peras”, por exemplo, servia de comparação quando dona Almerinda dirigia uma reprimenda a um filho ou neto mais preguiçoso. Ou então, quando alguém se aproximava em silêncio, sem revelar o motivo, ela perguntava sem rodeios: “Por que esse olhar de querer pendão[1]?”. Mais tarde descobri que a relação era com um pedinte que, autorizado por ela a colher algumas espigas de milho de sua plantação, abusou na colheita e destruiu todos os pendões do milharal.
Mas de todas as histórias, a que me acompanha até hoje é a das tesouras. Inspirado numa das superstições de Dona Almerinda, escrevi uma mini-crônica, quando participei em 2002 da Oficina de Criação Literária ministrada pelo escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, dentro do Programa de Pós-Graduação da PUC/RS:
“Minha avó tinha certas manias. Lembro de uma que me acompanha até hoje. A tal mania das tesouras em cima da mesa. Repetidas vezes, recomendava a todos da casa que sumissem com as tesouras. Abertas ou fechadas sobre a mesa era sinal de cobradores batendo à porta no mesmo dia. Diante dos resmungos dos filhos que duvidavam daquela verdade e enfrentando os risos dos netos, ela repetia o que acontecera com uma vizinha, já falecida. Presenteada pela nora com um fino estojo, contendo meia dúzia de tesouras de vários tamanhos e formatos, a vizinha decidiu exibi-las sobre uma pequena mesa, na sala de estar. Foi tão longo o desfile de cobradores a acertar contas com a tal vizinha, que ela liquidou dívidas que nem eram suas e acabou na miséria. Foi sepultada junto com as tesouras.
Dona Almerinda também se divertia com as superstições alheias. Na verdade, ela gostava mesmo de uma boa missa aos domingos.
Em homenagem à minha avó contadora de histórias, ainda hoje sempre que encontro uma tesoura em cima da mesa, trato de guardá-la em uma gaveta e faço questão de passar a superstição adiante.”
[1] Pendão: inflorescência do milho (Dicionário Aurélio).
Herdei do pai a alegria no dia a dia, sempre fazendo uma piada, mesmo nas situações mais tensas. Não foi por acaso que no velório do seu Eurides, em Cruz Alta, nos anos 70, o silêncio da madrugada foi rasgado pelo som de gargalhadas. Eram os colegas do meu primeiro grupo de teatro amador que numa espécie de ritual de bom humor, se despediam do meu pai com uma tradicional roda de anedotas.
por causa disso, há um ano que guardo as tesouras incontinenti assim que acabo de usá-las.